Biblioteconomia e Ciência da Informação: dois campos que podem se fortalecer a partir das especificidades

Por Ricardo Queiroz*

[dropbox]V[/dropbox] ou começar dizendo o óbvio: não sou especialista no debate entre Biblioteconomia e Ciência da Informação. Meu conhecimento sobre o tema é pontual, mas suficiente para entender que ele não pode ser ignorado. E, sendo sincero, não é um tema que me mobiliza pessoalmente. Mas isso não significa que possa ser tratado com desinteresse, ainda mais quando envolve a forma como a área se apresenta, se estrutura e se compreende. Como bibliotecário com doutorado em andamento, reconheço que certos assuntos, mesmo que não despertem entusiasmo imediato, exigem atenção por tocarem em dimensões fundamentais da profissão e levantarem debates importantes para a articulação do campo de conhecimento.

Foi nesse espírito que li o artigo de Leonardo Assis, Biblioteconomia não é subcampo: é ciência, é prática, é história, publicado no Jornal da USP. O texto discute a decisão da USP de rebatizar seu curso como “Biblioteconomia e Ciência da Informação” e alerta para o risco de esvaziamento simbólico da Biblioteconomia nesse processo. Assis traz uma defesa enfática da identidade do campo e da importância de reconhecer sua trajetória, suas práticas e seu vínculo com instituições concretas como as bibliotecas. Seu argumento central é que nomes importam, pois carregam sentidos e orientam percepções.

Essa defesa tem solidez. A Biblioteconomia não é uma aplicação técnica subordinada a outro campo, mas um domínio com pensamento próprio, com produção intelectual, com história e função social específicas. Há um corpo de práticas e conhecimentos que não pode ser comprimido em categorias genéricas que soam mais modernas, mas que pouco dizem sobre os desafios reais enfrentados por quem atua em bibliotecas, arquivos e centros de informação.

Quando Assis afirma que a Biblioteconomia não é subcampo, mas campo em si, ele toca num ponto importante. Essa é uma reivindicação legítima, e faz sentido defender que a área tem história, práticas e fundamentos próprios. Mas talvez a questão não esteja apenas em definir se a Biblioteconomia ocupa ou não uma posição subordinada, e sim em como se constroem as relações entre os campos na prática. Além disso, é essencial que o próprio campo mantenha aberto o questionamento sobre sua identidade, seus limites e sua relevância hoje. A afirmação da autonomia precisa vir acompanhada de reflexão constante, abertura ao debate e disposição para se reposicionar quando necessário. Se for para dizer que a Biblioteconomia não é subcampo, que isso se sustente não apenas na oposição a outra área, mas na consistência do que ela mesma propõe. Negar vínculos por princípio pode isolar, enquanto dialogar com outros saberes pode ampliar possibilidades sem comprometer a integridade do campo.

Por outro lado, o artigo perde precisão ao reduzir a Ciência da Informação a uma ideia vaga e pouco conectada à realidade. Para não correr o risco de desandar em diatribe, a crítica poderia ser mais consistente se reconhecesse que há, dentro da Ciência da Informação, perspectivas críticas, metodologias variadas e contribuições relevantes para os problemas enfrentados hoje pela Biblioteconomia. A oposição entre os campos, nesse ponto, empobrece a análise.

Um exemplo, confesso, básico: Paul Otlet, um dos nomes centrais na origem da Ciência da Informação, já no início do século 20 propunha um projeto de organização do conhecimento com finalidade pública, articulando técnica e compromisso social. A Classificação Decimal Universal, criada por ele, é um sistema técnico, sim, mas que nasce de um projeto de mundo. Essa herança teórica não é um desvio da prática, mas parte de um modo de pensar a informação com implicações reais para políticas de acesso e mediação. Outras conexões também merecem ser lembradas. As discussões sobre competência em informação, que ganham corpo dentro da Ciência da Informação, têm sido apropriadas por bibliotecários no contexto escolar e comunitário como ferramenta para mediação crítica do conhecimento. Da mesma forma, estudos sobre desinformação, cultura algorítmica e governança de dados — hoje intensamente desenvolvidos na Ciência da Informação — oferecem insumos concretos para repensar o papel das bibliotecas como espaços de formação cidadã. Esses pontos de contato não diluem o campo da Biblioteconomia, ao contrário, ampliam suas possibilidades de atuação com mais densidade conceitual e visão estratégica.

E talvez esse seja um ponto de partida interessante. É possível pensar intersecções produtivas entre Biblioteconomia e Ciência da Informação sem que uma precise absorver ou anular a outra. As bibliotecas enfrentam questões como desinformação, algoritmos, vigilância, ataques anticiência, acesso desigual, e muitas dessas questões vêm sendo analisadas por correntes críticas da Ciência da Informação. Ao mesmo tempo, a experiência cotidiana dos bibliotecários tem muito a oferecer em termos de sensibilidade social, compreensão territorial e práticas de mediação. Esses dois campos podem se informar mutuamente. Em vez de se anularem, podem se fortalecer a partir das diferenças e das especificidades.

Por isso, vale o convite para que esse debate seja feito com mais atenção e menos caricatura. Com espaço para discordância, mas também para construção. Com menos formalismo e mais clareza sobre o que está sendo discutido. Não se trata de defender nomes por si só, mas de pensar o que está sendo afirmado ou apagado quando certas mudanças acontecem. Isso importa.

Apesar das críticas ao texto de Assis, é importante reconhecer o que ele provoca. Ele levanta uma questão que estava sendo conduzida com pressa e pouca escuta. O desconforto que ele expressa é legítimo. E mesmo que seu texto não ofereça todas as respostas, ele ajuda a fazer as perguntas certas. Esse já é um bom motivo para continuar a conversa.

Disputas em torno de nomes, classificações e campos não são apenas exercícios de vaidade acadêmica. Elas influenciam políticas, compõem currículos, reorientam verbas e redesenham os contornos do que se considera relevante. Quem define os termos, define os rumos. Fingir que essas discussões são secundárias é, no mínimo, ingenuidade. E deixar que elas sejam decididas apenas por critérios de marketing institucional ou por idiossincrasias pode ser ainda pior. A pergunta que fica é: queremos um campo com memória, presença e efetividade, ou uma etiqueta fluida, feita para caber em qualquer prateleira sem incomodar ninguém ou que satisfaça a interesses sazonais?

QUEIROZ, Ricardo. Biblioteconomia e Ciência da Informação: dois campos que podem se fortalecer a partir das especificidades. Jornal da USP, 23 abril 2025. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=880625 Acesso em: 24 abril 2025.

Ricardo Queiroz é pesquisador do Grupo de Pesquisa em Política e Ação Cultural da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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