Quais são os desafios das bibliotecas nos dias de hoje e qual é seu futuro?

17 MAIO 2024 | 13min de leitura – Link: https://leiaisso.net/wc8xo/

 

A Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, completa 100 anos em 2025 e passa por uma reforma na sua programação — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

A Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, completa 100 anos em 2025 e passa por uma reforma na sua programação — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

Não faz mais sentido avaliar o papel e a importância das bibliotecas pelo número de visitantes que vão até elas ou pelos dados sobre livros e revistas retirados pelos frequentadores. Essas métricas são coisa do passado, argumentam diretores de bibliotecas e especialistas.

Hoje, os critérios são outros porque muitas bibliotecas mudaram de perfil e outras tantas estão se reformulando.

Essas transformações são, claramente, uma resposta à revolução digital, em especial na forma como nos informamos e no nosso relacionamento com os livros.

As bibliotecas que já não se adaptaram aos novos tempos ou não estão procurando opções nesse sentido correm o risco de desaparecer – como já vem acontecendo.

No Brasil, o número de bibliotecas públicas diminuiu de 6.057 para 5.293 em apenas cinco anos, entre 2015 e 2020, de acordo com dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Dados do Censo Escolar mostram que apenas 39% das escolas municipais no país mantém bibliotecas.

Há, além disso, pressão de grupos que defendem a ideia de que não é preciso mais destinar recursos financeiros ou de pessoal para bibliotecas, assim como cresce a ameaça de censura a livros e cancelamento de autores, que acabam prejudicando o funcionamento ou ao menos a imagem das bibliotecas.

Recentemente, para citar apenas um caso, a Prefeitura de Goiânia provocou enorme polêmica ao anunciar que transformaria salas de leitura de escolas – substitutos mais simples de bibliotecas – em salas de aulas, iniciativa que foi barrada pela Justiça e pelo Tribunal de Contas do estado.

O caso mais recente atingiu “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório, censurado em pelo menos três estados.

O problema não ocorre apenas no Brasil – segundo a Associação Americana de Bibliotecas, o número de livros alvos de censura aumentou 65% de 2022 para o ano passado.

Zoara Failla, coordenadora do Instituto Pró-Livro, cita a falta de biblioteca em muitos municípios — Foto: Divulgação

Zoara Failla, coordenadora do Instituto Pró-Livro, cita a falta de biblioteca em muitos municípios — Foto: Divulgação

Em uma tendência que se observa em muitos países, em alguns casos já há décadas, como na Dinamarca e nos Estados Unidos, bibliotecas no Brasil passam por alterações profundas ao ampliar sua área de atuação, com programas e eventos que buscam atrair as pessoas. Hoje, muitas delas podem ser consideradas centros culturais, com projetos nas áreas de educação, aperfeiçoamento e recreação, além de informação, e não apenas depósitos de livros em papel.

É o que informa, por exemplo, Adriana Ferrari, coordenadora técnica da Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais da Universidade de São Paulo (ABCD/USP), órgão que organiza o trabalho de 64 bibliotecas da universidade. Para ela, é empobrecer o papel das bibliotecas usar métricas que diz serem ultrapassadas para avaliar seu papel. Passaram a ter prioridade conceitos como inclusão e acolhimento.

Um exemplo disso foi o que aconteceu durante a pandemia de covid. Com o ingresso maior de alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, aumentou o número dos estudantes com dificuldades para encontrar um lugar onde estudar e às vezes até sem acesso de qualidade à internet, carências que foram suprimidas, em parte, pelas bibliotecas, com a extensão dos horários de funcionamento. Para Ferrari, as bibliotecas da USP estão se tornando, cada vez mais, ambientes de estudo e convivência.

Uma tarefa das bibliotecas da USP é tentar mostrar os detalhes dos seus acervos para o maior número de pessoas. A universidade mantém, por exemplo, o portal de livros abertos, com reunião e divulgação dos livros digitais, com downloads gratuitos, acadêmicos e científicos publicados pelas unidades, institutos, centros e demais órgãos de todas as áreas do conhecimento – e os repositórios digitais de teses e dissertações, baseados em pesquisas científicas.

Bibliotecas da USP tornam-se cada vez mais ambientes de convivência, diz Adriana Ferrari — Foto: Gabriel Reis/Valor

Bibliotecas da USP tornam-se cada vez mais ambientes de convivência, diz Adriana Ferrari — Foto: Gabriel Reis/Valor

A transformação em centros culturais não é, claramente, um processo homogêneo, até porque muitas bibliotecas públicas, não vinculadas a universidades, mas sim a governos estaduais e municipais, não dispõem de amplos recursos financeiros e humanos para tocar essas mudanças.

São frequentes os casos de bibliotecas sem bibliotecários ou professores que possam auxiliar os frequentadores – um indicativo importante de carência de estrutura. Uma pesquisa de 2015 tocada pelo Instituto Pró-Livro mostrou que 74% dos responsáveis pelas bibliotecas consultadas tinham pessoas com formação universitária no comando; apenas 12%, porém, tinham formação de bibliotecário.

Além disso, um problema ainda maior no Brasil é a falta pura e simples de bibliotecas em muitos municípios, como lembra Zoara Failla, coordenadora do Instituto Pró-Livro (uma organização da sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos, mantida por entidades ligadas ao setor livreiro). Segundo o Ministério da Cultura, em 2022, 82,6% das cidades tinham ao menos uma biblioteca pública em funcionamento – ou seja, quase mil municípios não contavam com biblioteca pública.

As bibliotecas nas escolas melhoram o desempenho dos alunos, mostram estudos. Failla cita uma pesquisa que mostra que o aprendizado dos estudantes em colégios onde existem bibliotecas é mais adiantado em 1,5 ano em comparação com alunos sem acesso às bibliotecas nas escolas tanto em português como em matemática. E mais: 60% dos estudantes entrevistados num levantamento do Instituto Pró-Livro dependem das bibliotecas das suas escolas para ter acesso aos livros recomendados pelos professores.

Outro empecilho para a ampliação do modelo de bibliotecas é a falta de recursos tecnológicos. A maioria das bibliotecas no Brasil tem algum tipo de contato digital com os usuários, embora apenas um terço tenha redes sociais. De acordo com a pesquisa TIC Cultura de 2020, 33% das bibliotecas públicas possuíam redes sociais, 3% tinham site próprio, 14% usavam site de terceiros e 3% tinham aplicativos para celulares e tablets. É possível que tenha ocorrido uma ampliação desses recursos por causa da pandemia, que acelerou investimentos em tecnologia em alguns estados.

Não é apenas o desafio tecnológico da digitalização da vida pública, profissional e pessoal que se impõe ao papel das bibliotecas. Um estudo da Gerência de Bibliotecas de Barcelona, de 2021, lista outras questões, como as mudanças na educação – “aprende-se fazendo. Torna-se mais necessário do que nunca ser formado ao longo da vida”.

Além disso, hoje por meio de produtos e serviços de comunicação digital, o usuário passa a ser gerador e disseminador de opinião e informação (às vezes de notícias falsas). Um terceiro aspecto é a dificuldade de encontrar financiamento público: “a diminuição das dotações orçamentárias torna necessário que os serviços públicos aumentem sua eficiência e justifiquem o retorno dos investimentos”.

Apesar desse cenário adverso, são muitos os relatos de como mesmo em cidades menores, longe das metrópoles, bibliotecas menores estão tocando projetos que ampliam suas ações. A meta em muitos casos é transformar o espaço antes só dedicado a livros e revistas em centros que abranjam atividades culturais e/ou artísticas de outras áreas, que envolvam a comunidade.

É o caso, por exemplo, de Limeira, uma cidade de 308 mil habitantes (segundo o último censo), no interior de São Paulo. Todas as semanas, cerca de 800 crianças passam horas na biblioteca pedagógica municipal, no período em que não estão nas escolas. A intenção é que a biblioteca funcione como uma extensão da escola, complementando o trabalho dos professores, em especial incentivando os estudantes a lerem livros que não sejam os didáticos.

Para isso, sem grandes dotações orçamentárias, busca-se fórmulas criativas para atrair e entreter as crianças – dos 4 ou 5 anos até 10 anos – de forma que se tornem leitores de livros. Encontros virtuais com os autores de livros infantis, como o best-seller Pedro Bandeira, parcerias com empresas da região que podem financiar atividades, conversas com pessoas que contam sobre livros e escritores são exemplos dessas atividades, como conta sua bibliotecária, Taciana Lefcadito Alvares.

Muito distante do eixo Rio-São Paulo, a Biblioteca Pública Estadual Elcy Lacerda, em Macapá, no Amapá, possui uma sala de literatura infantil, com uma coleção muito variada de gêneros textuais, como quadrinhos, clássicos infantis, educação sexual, histórias infantis, lendas e histórias de autores locais e nacionais, conforme apurado pelo estudo, muito detalhado, feito pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), sobre o valor social das bibliotecas públicas no Brasil, divulgado em janeiro deste ano.

A programação da biblioteca envolve também um espaço da estação de rádio Macapá. Trata-se de um programa de entrevistas com artistas e escritores locais, além da editora, que aborda temas de interesse dentro do segmento de arte, cultura e literatura, veicula informações sobre as ações e projetos da Secretaria de Estado.

O levantamento do SNBP traz muitos outros exemplos no mesmo sentido. As bibliotecas mineiras organizam sessões de contação de histórias para crianças, clubes de leitura, recitais de poesia, exposições temáticas do acervo, sacos de leitura, encontro com escritores, oficinas literárias, apresentações de livros (principalmente de escritores locais), noites literárias, leitura de quadrinhos, cinema comentado, performances teatrais, um festival literário com feira de livros etc.

Nesse processo de transformação em centros culturais, bibliotecas estão atraindo adolescentes e jovens adultos e não apenas crianças e idosos – grupos que tradicionalmente frequentam as bibliotecas, no caso das crianças preferencialmente as bibliotecas das suas escolas, quando elas existem. Muitos levantamentos mostram que tradicionalmente as crianças em idade escolar formam o grupo que mais lê livros e que mais vai a bibliotecas, mas esse cenário começa a mudar. É uma tendência que se observa nos Estados Unidos, por exemplo, como mostra um estudo divulgado recentemente.

Americanos nascidos entre 1980 e 2010 estão usando as bibliotecas públicas americanas, seja presencialmente seja por vias digitais, mais do que as gerações mais velhas, de acordo com uma pesquisa publicada em novembro de 2023 pela Associação Americana de Bibliotecas. O levantamento mostra que 54% dos entrevistados da chamada geração Z (nascidos entre 1997 e 2010, ou seja, com idades entre 27 e 14 anos) e dos millennials (com nascimento entre 1980 e 1996 e idades entre 44 e 28 anos) visitaram uma biblioteca pessoalmente nos 12 meses anteriores à pesquisa.

Além disso, mais de 50% dos que disseram ter ido fisicamente a uma biblioteca informaram que também consultaram livros virtuais do acervo de bibliotecas, indicou a mesma pesquisa. E, adicionalmente, os adolescentes e os jovens adultos mostraram preferência pelos livros em papel – compraram e leram, em média, o dobro de livros impressos por mês do que qualquer outra faixa etária.

No ano passado, foram vendidos 659 milhões de livros em papel no Reino Unido, um recorde. Também nesse caso, uma pesquisa da Nielsen BookData destaca que são os livros impressos que são preferidos pela geração Z – 80% das suas compras de livros foram de publicações em papel, no período de um ano entre novembro de 2021 e novembro de 2022. No Reino Unido, as visitas presenciais a bibliotecas aumentaram 71% nos últimos anos. Na Escócia, especificamente, registram-se mais de 43 milhões de visitas a bibliotecas em um ano – o que significa que cada escocês vai quase mensalmente a uma biblioteca. É o mais popular serviço fornecido pelos governos locais.

Isso não quer dizer que a ida em pessoa a bibliotecas não diminuiu nos últimos anos, tendência reforçada pela pandemia da covid, mas, em contrapartida, aumentou exponencialmente a busca de textos (não apenas de livros) digitais. Dados detalhados sobre essa movimentação são raros, porém, estatísticas coletadas nos Estados Unidos, embora não tão recentes, servem como exemplo.

Em 2020, as cerca de 9 mil bibliotecas públicas americanas receberam aproximadamente 732 milhões de visitas presenciais (incluindo-se as participações em eventos e programas das bibliotecas). Por causa da pandemia, esse número representou uma redução de 41,6% em relação ao 1,25 bilhão de visitas de 2019. Mesmo assim, é como se cada um dos 331 milhões de habitantes dos EUA fossem, pelo menos, duas vezes ao ano em uma biblioteca.

No mesmo ano de 2020, os acessos aos websites dessas bibliotecas somaram 1,16 bilhão, um número muito expressivo, que revelou, porém, uma queda de 20% em comparação com o ano anterior, também atribuída aos efeitos colaterais da pandemia, com a suspensão de aulas ou o funcionamento das escolas apenas online. Antes da pandemia, a demanda por livros e outros textos digitais vinha crescendo substancialmente ano após ano – em 2019, por exemplo, tinha aumentado pouco mais de 30%, de acordo com dados coletados pelas próprias bibliotecas públicas dos Estados Unidos.

Apostar nos livros em papel pode parecer obsoleto para muitos, mas começam a ser divulgados estudos acadêmicos que mostram sua importância para, por exemplo, crianças. Um estudo realizado por neurocientistas do Teachers College da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, mostrou que para compreensão de um texto a partir de uma leitura mais aprofundada há vantagem clara em ler um texto em papel e não numa tela, como antecipou o jornal “The Guardian” na sua edição de 17 de janeiro.

A pesquisa envolveu 59 crianças com idades entre 10 e 12 anos – pediu-se que elas lessem textos diferentes entre si nos dois formatos enquanto usavam redes de eletrodos na cabeça que permitiam que os cientistas acompanhassem as variações nas respostas celebrais. O estudo utilizou um método inteiramente novo de associação de palavras, no qual as crianças “realizavam tarefas de julgamento semântico de uma única palavra” depois de lerem as passagens. É nessa fase de idade que ocorre, em geral, uma mudança crucial para o entendimento da leitura: passa-se do “aprender a ler” para “lendo para aprender”.

Esse e outros achados poderiam ajudar a brecar um movimento bastante forte que tenta, em variados países, diminuir a importância dos livros e, em última instância, das bibliotecas – ou que busca eliminar gradualmente os livros impressos em favor apenas dos textos digitais.

Curiosamente para instituições que muitos consideram ultrapassada, bibliotecas ao redor do mundo têm sido alvos de ataques cibernéticos em que os bandidos pedem dinheiro para que não derrubem ou corrompam os sistemas de informática que viabilizam o acesso aos livros e outros textos. Texto recente do “Financial Times” listou três desses ataques desde 2021 em grandes bibliotecas públicas, de Londres, Toronto e Boston. Suas diretorias se recusaram a pagar os resgates pedidos e, com isso, o acesso aos seus acervos ficou prejudicado por meses.